VERMELHO E PRETO

Coletivo Pretaria
4 min readSep 30, 2022

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Durante o meu Ensino Médio, eu tinha uma camisa que era praticamente o meu uniforme. No caso, era o meu segundo uniforme, já que eu a usava até debaixo da camisa do colégio. Aquele estrelão vermelho no peito era a camisa mais famosa da Faetec, de Quintino e quiçá da Zona Norte, tendo em vista que a minha roqueiragem, nesse período, era dentro do eixo Madureira-Rocha Miranda. A camisa, em questão, não era de nenhum político em questão, mas era, sim, bem política. Era do Rage Against The Machine, a minha banda favorita.

Depois eu descobri, por meio de amigos, que eu não poderia ir na casa deles, dependendo de onde fosse, pelo fato de a estrela ser vermelha, bem vermelha. O problema é que eu poderia ser confundido com um simpatizante do Comando Vermelho em áreas onde ele não seria o “gestor” e, assim, apanhar ou até levar um tiro. Por isso, eu sabia bem, muito bem, onde é que eu poderia usar aquela camisa e qualquer outra roupa de cor vermelha destacada na cidade. Era só saber qual era a facção regente dali.

Duas décadas depois, eu continuo precisando saber em que lugares eu posso ir se estiver com alguma roupa vermelha para não correr o risco de apanhar ou levar um tiro. Porém, o “movimento” que pode me esculachar, mudou. Assim como os agentes podem ser qualquer pessoa em potencial no filme “Matrix”, o fascista de verde e amarelo também pode estar em qualquer lugar possível da cidade. Por isso, vestir vermelho, em qualquer lugar, é o mesmo que atiçar os touros de desenho animado espalhados por aí. E haja gado nessa cidade.

Depois de anos acompanhando eleições — seja trabalhando como mesário ou como jornalista — e mesmo que a minha zona eleitoral seja em um dos corações do nosso milicil, eu nunca me senti tão vulnerável quanto aqui e agora. Nas eleições de 2018 mesmo isso já estava muito bem desenhado. Eu tive amigos que foram cuspidos, socados, xingados e que tiveram até armas apontadas contra eles apenas pelo fato de estarem com alguma peça vermelha de roupa ou com algum bottom de algum candidato que não fazia parte do klan. O resultado está aí, com as atuais agressões a crianças, mulheres grávidas e pessoas com deficiência, e isso sem falar nos assassinatos dentre uma “polarização” que só existe de um lado.

ALERTA COR

O ódio político também está bem longe de ficar restrito apenas à cor vermelha, já que ser uma pessoa negra dotada de direitos cívicos já te enquadra no trinômio racista bandido-vagabundo-parasita do sistema. Isso também já estava muito bem desenhado lá em 2016, durante o golpeachment de Dilma Rousseff. Eu me lembro de um caso em que um homem negro saiu de sua casa no subúrbio do Rio, de trem, para ir protestar contra a presidenta, de verde e amarelo, no Centro. Ele, um dos únicos negros naquele mar de gente branca, começou a ficar incomodado com o rumo do ato, que estava indo por ruas erradas, dispersando etc. Ele tentou arrumar a bagunça, mas foi logo rechaçado e até expulso do local, com violência, e aos gritos de…petista.

Este homem foi expulso do ato por ser negro, pois, para as pessoas dali, ele seria um “petista” infiltrado. Para quem acha isso estranho, existe uma “tese” brutalmente racista de que a esquerda brasileira teria cooptado os movimentos negros, logo, TODOS os negros seriam marionetes dessa tal esquerda hiperdimensionada que habita os pesadelos dos paranoicos — lembrando sempre que paranoia e racismo são vasos comunicantes. E isso eu escutei, inclusive, recentemente, em um evento festivo, de uma pessoa branca e durante uma conversa trivial que eu nem sequer estava a fim de participar. Pois é. O antipretismo é muito mais antigo que o antipetismo.

A minha situação de insegurança já bastaria pelo fato de eu ter a cor daqueles que, hoje, além de serem os que morrem a cada 23 minutos no país, são a maioria nas universidades públicas pela primeira vez na história. Por isso, sobre a tal “cooptação” dos negros pela esquerda que os supremacistas acreditam piamente como se todos os negros fossem essa tal massa uniforme, eu deixo a inversão proposta pela filósofa Sueli Carneiro: a função do(s) movimento(s) negro(s) é, justamente, radicalizar a esquerda, levando a esquerda para a esquerda. O medo do voto negro nesse país é justamente esse, pois em cada um de nós, há a chance e o medo da “favela descer” e acontecer uma nova Palmares ou, quiçá, um novo Haiti por via eleitoral. Por isso é que ameaçam retirar o transporte público, os empregos de seus funcionários e até negam a comida a quem está precisando. O vermelho, de longe, é confundido com o preto.

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