VOCÊS QUE SÃO PRETOS QUE SE DESENTENDAM

Coletivo Pretaria
4 min readFeb 5, 2021

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Enquanto Wakanda entrou em guerra civil por conta do BBB 21, eu seguia maratonando, de forma homeopática, a série documental Hip-Hop Evolution, do Netflix, que traça uma crocante cronologia do movimento hip-hop americano em seus primeiros 20 anos. Neste momento, estou na parte da história que eu acompanhei, em parte, por ter sido um adolescente fã do 2Pac: a rixa bairrista entre os rappers de Nova York e Los Angeles que acabou, tragicamente, dando em diversas baixas em ambos os lados, como a do próprio Pac e a do Notorious B.I.G/Biggie Smalls.

O que sempre me impactou nesta questão é que existe uma farta documentação sobre esses atentados, assim como dezenas de testemunhas, mas que a polícia não pareceu, e nem parece, dar muito a mínima mais para isso até chegar, de fato, nos verdadeiros mandantes dos crimes. Afinal, na visão racista das forças policiais — pois o Rage Against The Machine não escreveu “alguns daqueles que são das forças são os mesmos que queimam cruzes” à toa — aqueles casos poderiam ser resumidos em apenas uma questão: são apenas pretos se matando.

E vamos ao corte geotemporal: Brasil, anos 80. O crime organizado começa, de fato, a se organizar no país. Logo, surgem mais de 20 facções e subfacções, que, sob vista grossa das autoridades, iniciam uma escalada armamentista com a finalidade de conseguirem ganharam mais território. Já que favela alguma produz drogas e fuzis até hoje e como esses itens não dão em árvore, seria bem fácil para que um grupo de inteligência rastreasse, logo no início deste processo, a origem dessas armas de guerra. Porém, o caso foi resumido a uma questão: são apenas pretos se matando.

E mais corte: Brasil, 1995. A única novela que vi do início ao fim, “A próxima vítima”, foi lançada neste ano. Além da trama que parou o Brasil por conta da descoberta do assassino que garantia o título ao folhetim, havia uma família que eu achava muito interessante. Uma família como eu nunca tinha visto na TV brasileira até então. Uma família negra de classe média. Não remediada, era média média mesmo. Eu adorava ver os Noronha e eu digo só ver mesmo, porque ouvi-los era bem sofrido. Além deles sofrerem com o racismo dos próprios vizinhos, eles também eram bem preconceituosos de diversas formas (“é ser humano, ser humano ê”, diria Zeca Pagodinho). O ápice foi com a revelação da homossexualidade de um dos filhos, que causou o choro compulsivo da mãe e uma tentativa de internação de um dos irmãos. Porém, para quem via de fora e não tinha nenhum envolvimento representativo e emocional com a família, eles eram só… pretos se matando.

E aqui nós chegamos ao BBB 21, pois, citando mais uma vez a letra de “Killing in the name”, nós continuamos fazendo o que eles mandam. Sim. Vibrar com um espetáculo de coliseu de gente preta oferecido e, desta forma, servir como vento na brasa na fogueira das vaidades. E fogueira é termo melhor para isso porque todos os envolvidos, quem participa ou observa, está se queimando. Afinal, conforme já escrevi por aqui, o cancelado sempre tem cor.

Não importa o grau, o motivo, a razão e nem mesmo a circunstância quando a roupa suja wakandiana começa a ser lavada em público. Quem odeia preto e continua na supremacia das representações, só enxerga, comemora e propaga mesmo é que há pretos se matando.

O folclorista Luiz da Câmara Cascudo costumava contar uma história do século XVIII envolvendo o chamado Regimento dos Homens Pardos do Rio de Janeiro. Uma vez, o capitão Manuel Dias de Resende foi se queixar com seu superior branco, o major Melo, pois havia acabado de ser desrespeitado por um soldado. Para a sua surpresa, o comandante do regimento desdenhou de sua reclamação e ainda chapuletou “vocês que são pardos que se entendam”. Revoltado, Manuel relata isso ao vice-rei Dom Luís de Vasconcelos e Souza, que prende Melo. “Preso, eu? E por quê?”, perguntou o major. O vice-rei respondeu: “Nós somos brancos, cá nos entendemos”

O Brasil, neste exato momento, está com milhões de majores Melo torcendo para que os “pardos” nunca se entendam. O show não pode parar.

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